ORGULHOSAMENTE: UMA FAMÍLIA DE DOIDOS
A minha mãe era a filha mais velha de uma casal, o meu pai o filho mais novo… num universo que o número mínimo de filhos era de 7, isto remete-nos para o facto de se ser pai de crianças pequenas até muito tarde da sua vida…
Foi isto que aconteceu aos meus avós paternos e, claro, ao meu pai… quando ele nasceu, os seus pais rondavam os 40 anos… morreram novos (rondando os 60 anos) e quando eu nasci, tinha o meu pai 30 anos… já os meus avós paternos tinham “partido” há muito…
Os meus avós maternos, ainda conheci… a minha simpatia por eles é vã… nunca vivi com eles, logo nunca os conheci bem.
Criaram 9 filhos… “os mais velhos, ajudaram a criar os mais novos”, técnica normal e “revolucionária” na altura, que levou a que a minha pobre mãe na condição de filha mais velha e MULHER, tivesse tido uma infância infernal, de maus-tratos, trabalho forçado… enfim… os filhos, hoje, dizem condescendentemente que “era o que tinham ao seu alcance, coitadinhos”…
Dos meus avós paternos… que nunca conheci… Sei o que me contam…
Ele, de nome Henrique, era uma pessoa alegre, bem disposta, trabalhador, e muito crítico da sociedade, foi preso várias vezes por (dizem que estando embriagado) atirar cá para fora as suas opiniões revolucionárias e pouco ortodoxas sobre a sociedade …
O Avô Henrique, adorava crianças e já idoso e brincava com as crianças na rua como se fosse da idade delas … as pessoas mais velhas referem-se a ele como “doido” por fazer isto… fazia partidas ás pessoas, nadava sem roupa no rio… era um “espírito livre”…
Ela, de nome Maria Emília, era uma pessoa bondosa que partilhava o pouco que tinha com quem tinha ainda menos, que adorava a natureza e os animais…
Dizem (e eu imagino) que a minha avó Maria Emília era paciente com as crianças, com as suas e as dos outros, era amável de voz doce e beleza rude… a sua beleza estava lá dentro, era alta e isso era motivo de chacota …
Foi ela que me motivou a escrever este “post”… porque apesar de nunca a ter conhecido, parece que sinto que ela faz parte de mim… que ela sou eu, ou ela está aqui algures dentro de mim… num gene…
Contaram-me recentemente, duas bonitas histórias… perdidas nas VERGONHA do tempo… Imagine-se NA VERGONHA…
Orgulhosamente, cabe-me a mim recuperá-las para que fiquem registadas e para que se saiba que a minha avó Maria Emília e o meu avô Henrique, eram duas pessoas muito á frente do seu tempo… Uns hippies em tempo de escassez e guerra…
A minha avó Maria Emília tinha uma horta perto de casa, nela tinha couves, alfaces, cenouras, batatas, tomates e tudo o que a terra desse para que a sua família tivesse sempre o que comer… no outro lado da horta ela tinha um jardim, com plantas e flores, daquelas que a mãe natureza deu ao homem para apreciar e tornar o mundo mais bonito…
Não era permitido a uma “mulher do povo” ter um jardim… o seu jardim, com flores, com plantas que não servem para nada… Não era permitido a uma mulher do povo “falar” ou “rezar” (ou fosse o que fosse) para as plantas, não era cristão… não era de gente “normal”… a minha avó era criticada por ter um “jardim” em “local precioso” para plantar batatas, e couves… o jardim, segundo dizem… era lindo… bem tratado…e aos filhos dos meus avós nunca faltou comida na mesa, nem amor e nem boa disposição…
Os meus tios e tias, eram considerados pelos parâmetros da época como “mal-educados”… eu diria: privilegiada era a sua educação… pois foram (porque muitos deles já não estão entre nós) e são, bem como os seus descendentes, grandes seres humanos…
A outra história é ainda mais bonita, é contada pelos “nativos” em forma de chacota… e tenho apenas pena que não consigam ver a verdadeira mensagem…
A minha avó vinha de lavar no rio, trazia um enorme alguidar de barro na cabeça quando deparou com um pássaro (uns dizem pardal, outros pombo) na beira do caminho, quando passou mais perto o pássaro mexeu-se, estava vivo… a minha avó pegou nele com muito cuidado e lavou-o para casa… levou algum tempo a recuperá-lo…
(Não sei o que aconteceu em casa… mas imagino as crianças todas em volta a torcer pela recuperação da ave…)
Certo dia ela soltou a ave, já recuperada, restabelecida e saudável… e a partir desse dia ela passou a ser considerada oficialmente insana pela comunidade cristã local…
Hoje tenho apenas pena de nunca ter conhecido pessoalmente aquela família “meia-doida” á qual o meu pai pertencia e á qual era “embaraçoso” estar ligado… eu orgulhosamente descendo deles…
E com isto acabei de ligar definitivamente o orgulhoso e histórico apelido da minha avó materna (que uso como forma de ostentação) á boa disposição e juventude eterna do meu avô Henrique e ao amor pela natureza e pelos animais que herdei da minha avó Maria Emília…
Toma vai buscar…
E como em todas as belas histórias que habitam o nosso coração e os personagens que povoam os nossos sonhos... não tenho fotos deles...
(E só não coloquei o orgulhosos apelido do meu avô “Leitão”… porque, olhem… Não me lembrei… e agora já vou tarde…)
3 comentários:
Adorei, como sempre...
É uma pequena "short story" que nos prende do princípio ao fim...
Adorei e hei-de reler muitas mais vezes.
Os meus agradecimentos,
Sara
Maravilhoso!!!!
Amei e deliciei-me com cada pedacinho.
Falar dos nossos antepassados imediatos é inspirador, Mia. Esses teus avós eram muito livres e muito independentes, por isso simplificadoramente incompreendidos e taxados pelos conterrâneos.
Revejo-me todo e todo me indentifico com eles nesse destoar saudável de tudo e de todos e nesse ser de repente loucamente apaixonado pelo que é invisível a muitos. Deixarmo-nos enternecer pelo milagre da vida e por outros milagres é politicamente incorrecto mas é o nosso único certeficado de Sabor nesta vida transitória e fugaz.
Tive avós mais mártires que loucos mas tendo o Século XX sido louco em tudo, naturalmente que da loucura não escaparam: a minha avó materna jardineira que juntou uma pequena e admirável fortuna a vender flores cultivadas em casa durante anos e anos. Minha amada avó Ana, quanto amor e quantas saudades!
Meu avô paterno Carlos e o seu percurso de Encenador, Escritor, Dramaturgo local, dinamizando Teatro na nossa localidade, mito de comédia bem urdida e de serões deliciosos por lá, discursando no Clube ao longo de uma parte inicial e medial do século XX. Um homem lúcido. Um homem de Fé, meu amigo e meu modelo.
Tenho ainda vivas memórias dele: quando, naquele recanto da cozinha da minha tia, ele me repreendeu por perturbar o meu primito. Ei-lo e o seu cigarro. Ei-lo e o seu silêncio. Ei-lo e os seus desgostos secretos, o antigo e o recente.
Ou a vez única em que me veio chamar para passear até ao Pinhal luminoso que havia e não há mais na minha Terra, numa tarde de sol. Estava eu a dormir uma sesta. Tinha eu cinco anos. E ele veio por mim, inesperado. São memórias de luz que tenho. Imagens a que recorro, tão escassas, porque morreu subitamente pouco depois contra a minha vontade. Quando somos pequenos somos um frémito por referências e acalento e esses homens e mulheres experientes e sólidos na família são como estacas que nos consolidam. Nada cresce direito sem estacas.
Tenho comigo as suas fotos e os seus escritos!
Recordá-los com esta frescura e com este afecto é culpa tua, Mia!
PALAVROSSAVRVS REX
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