quarta-feira, março 12, 2008

A DIFERENÇA ENTRE "OLHAR" E "VER"...

Já passaram muitos anos e agora acho que já consigo falar nisto… como todas as coisas que nos comovem e emocionam com o tempo vamos conseguindo falar delas de uma forma mais romântica e menos dolorosa…

Hoje vou falar de alguém que me marcou pela sua presença (quase) discreta…

Trabalhei durante muitos anos na Baixa e ía de comboio, o meu adorado comboio que me deixava ler, livros, revistas, ler e aprender… a cadencia dos seus carris, a segurança que sentíamos ao ponto de conseguirmos dormir um pouquinho, os perfumes das pessoas que iam á “minha hora”, bancários, empregados de escritório, trabalhadores do Comercio, gente limpa e perfumada… as conversas ocasionais com outros passageiros, até os raros desentendimentos entre os passageiros por causa dos lugares que eram motivo de quebra de rotina… Tudo isto parece que foi há uma eternidade… e nem se passou ainda uma década… a minha empresa mudou de sitio, eu mudei de hábitos rotineiros, a linha mudou de comportamento…

Na minha habitual viagem matinal de Sintra ao Rossio, rotineira, sempre igual e á saída no Terminal em que toda a gente apressada se dirigia aos seu locais de trabalho passei a usar uma saída que tinha menos gente e que saía para a parte de cima do Terminal (Bairro Alto) …

Não me lembro quando “o” vi pela primeira vez… porque não reparei “nele”… limitei-me a olhar sem ver, como para qualquer outra coisa que estava ali como um banco, um poste, ou algo inanimado que pertence àquele sitio…

“Ele” era um ser humano “camuflado” na pressa das pessoas, no ambiente um pouco soturno daquele lado da estação… e eu, encadeada pela pressa de chegar ao escritório, pelo sol ou pelo meu egoísmo, não me lembro a primeira vez que “olhei para ele”…

Simplesmente não me fez qualquer tipo de impressão que ALGUEM VIVESSE ALI, na porta da estação, com uma cama de cartões e rodeado de caixas contendo coisas estranhamente organizadas para o local, a roupa muito suja, velha e amarrotada, não reparei no seu cabelo escuro e despenteado, nem na sua enorme barba emaranhada e baça, não reparei na sua pele clara, na sua estatura alta, nem na sua magreza extrema… simplesmente não REPAREI…

Naquela manhã de Verão, depois de sem me aperceber ele já fazer parte da minha paisagem e depois de ter passado eventualmente muitas vezes por ele, simplesmente olhando, vi-o pela primeira vez…

Uma pequena criança correndo atrás da pressa da mãe deixou cair uma sandes, ou um bolo (não me lembro) para o chão… a criança tentou apanhar, mas, obviamente a não a deixou apanhar…

De repente, no meio das pernas que passavam perto do pedaço de comida… vejo alguém curvado a apanhá-lo e a limpá-lo… Esta foi a primeira vez que o vi… de seguida, ele apagou a beata com os dedos castanhos do tabaco e unhas escuras da sujidade e começou a comer o pedaço de comida que a criança deixara caír… cortou-me o coração…

Não gosto de sentir pena porque acho que é um sentimento bastante frustrante, deprimente e não serve de nada… mas não consegui evitar… acho mesmo que o que senti foi isso… estava ali, um ser humano com 2 braços, 2 pernas, um homem aparentemente capaz a comer comida do chão… destroçado pela vida…

A descer a escada barulhenta de latão lembrei-me que levava o meu lanche, uma sandes de queijo… feita na noite anterior e voltei atrás atropelada pelas pessoas que desciam pela escada naquela manhã de sol dei-lhe o meu pão embrulhado numa prata… ele olhou-me e eu vi-o pela segunda vez… os seus olhos eram expressivos e rasgados, eram castanhos e ele parecia mais velho porque a sujidade lhe moldava as rugas de expressão e pareciam mais profundas… deviam ter uns 50 anos, o que decerto não seria a sua idade real e nos remetia para a casa do 40…

Disse “Obrigada” quase em forma de vénia… tentei dar-lhe dinheiro, não quis…

Nessa noite fiz 2 sandes e 2 sumos.

Na manhã seguinte vi-o pela terceira vez, estava a partilhar pão com os pombos, e entreguei-lhe a sandes e o sumo agradeceu como sempre…

Esta tornou-se a nossa rotina… quando não tinha pão levava-lhe um bolo… e mesmo pensando que fosse a única comida limpa que ele comia durante o dia e sendo que era pouco o que lhe levava…

Nunca falámos para além do “bom dia”, “Obrigada e até amanhã”… nunca soube o seu nome, porque vivia ali… aprendemos a viver a “nossa relação” de uma forma muito prática… o Inverno aproximou-se e levei-lhe um cobertor, e um dia uma camisola de lá, depois umas calças e umas botas do meu marido… nunca lhas vi vestidas, estavam guardadas muito protegidas nos sacos de plástico que lhe entreguei, dentro de uma das sua caixas de papelão…

Mas como já o via quando olhava para ele reparei que estava muito doente, tossia, tinha o ar lacrimejante… parecia mesmo muito doente, a sandes que lhe levara no dia anterior estava guardado na prata, meticulosamente arrumada numa das suas caixas de cartão… fiquei preocupada e a pensar nele ali, na porta da estação na corrente de ar… e arrisquei dizer-lhe que fosse ao hospital…

Esta foi a última vez que o vi… foi perto do Natal… levei as sandes nos dias seguintes, mas não mais o vi… não sei o que lhe aconteceu. Também não sei o seu nome, a sua história… olhei-o e vi-o… mas não fui ao fundo…

Terei tido medo? Não sei…

Gosto de imaginar que ele foi ao hospital onde foi cuidado, tratado, limpo, onde depois de tudo isso as roupas usadas que lhe levei e que ele nunca usou e guardou (se calhar) para uma ocasião especial o fizeram levantar-se e caminhar, viver… gosto de imaginar que ele anda por aí e eu não o reconheço…

Apesar da outra hipótese ter igual ou superior probabilidade… não quero pensar nela…