sábado, dezembro 01, 2007

OS ANJOS EXISTEM...

Eu queria ter-me despedido do meu pai...

Ele não partiu estoicamente aceitando para os outros que estava a partir... ele guardou para si este facto... guardou para si o segredo de que estaria muito pouco tempo entre nós e não nos deixou despedir dele... ele não gostava de despedidas...

Um dia, pouco antes de partir, ele falou-me de “passar ao nível seguinte”, falou-me da terra, falou-me da chuva, das plantas, da natureza que ele amava… e eu não percebi nada... não percebi que ele se estava a despedir de mim, dizendo-me que o poderia encontrar na energia de uma planta de uma árvore, na força da chuva... não percebi que ele queria que eu não sofresse porque ele queria que eu sentisse que ele estaria sempre por perto...

Quando ele partiu, eu senti-me sozinha... tão sozinha e abandonada que ainda hoje as férias não voltaram a ser como antes…perderam a piada…são tantas as coisas que deixaram de ter piada porque ele partiu…

Gostava de continuar a achar piada ás reuniões de família, mas não consigo evitar… ele era a magia daquelas reuniões… Era a energia que agora falta… essa energia está agora na terra… algures…

Eu queria ter-me despedido do Anjo Gonçalinho…

Um dia, depois da terrível perda do meu pai, achei que tinha ganho uma experiência tão forte que conseguiria ajudar os outros… resolvi ser voluntária, como tenho experiência com crianças achei que ficaria bem a fazer voluntariado na pediatria do IPO… fui bem aceite e aceitei bem o facto de haver injustiças tão grandes como crianças com cancro… bem… pelo menos no início…

Naquele dia conheci um anjinho chamado Gonçalo… o Gonçalo tinha 7 anos e tinha leucemia, aparte disso era uma criança como todas as outras, curioso, simpático… do que mais me lembro são dos seus enormes olhos castanho claros que me faziam lembrar um felino… a sua cabeça sem cabelo dava-lhe um ar poderoso… eu não percebi logo… mas o Gonçalinho era mesmo poderoso…

Quando o vi pela primeira vez, foi em Fevereiro de 2000 e ele estava numa cama ligado a uma série de máquinas, tudo á sua volta era branco e ele transmitia paz.

Quando me aproximei ele sorriu-me, os seus dentes da frente eram recentes grandes alvos e perfeitos… tinha um sorriso luminoso… eu levava comigo uns livros da Anita para lhe ler, achei que talvez ele gostasse… ele escolheu a Anita na Quinta e eu li-lho mostrando as imagens e inventando mais pormenores do que os descritos no livro… a mãe dele, loira, muito magra e ar cansado sorria com um sorriso igual ao dele…

Voltei lá uma semana depois, o Gonçalinho estava mais abatido. Os seus enormes olhos de gato, castanho claros estavam brilhantes e quis que lhe lesse de novo o mesmo livro… mas “queria outra história”… diverti-me muito a inventar vozes para os animais da quinta e outras aventuras para os personagens…

Depois perguntei-lhe porque queria sempre a mesma história e ele respondeu-me que gostava dos animais, gostava de ver as gravuras com os bonecos descalços… Respondi-lhe que quando saísse do hospital ele iria ver muitos animais e poder andar descalço na relva…

Jamais esquecerei as suas palavras: “Eu não vou saír daqui. A minha mãe já me disse que o menino Jesus está á minha espera… por isso eu não tenho medo.”

Mais do que conviver com a tragédia de ver as crianças doentes… é perceber que temos na nossa frente um anjo, que sabe que o é e que o aceita…
Não me lembro bem o que lhe disse, ou o que fiz a seguir… lembro-me que aquele fim de dia estava horripilantemente frio e eu, sozinha, chorava soluçante no parque de estacionamento do IPO insultando deus…

Quando na semana seguinte voltei de novo ao IPO, o Gonçalinho já estava com o Jesus dele… cobardemente não tive coragem de ír ao seu definitivo encontro com o seu Jesus… não tive coragem de dizer á mãe do Gonçalinho o quanto ele me marcou… Nunca mais lá voltei!

Porque não me despedi destes MEUS dois anjos que me marcaram de forma diferente e positiva, quero deixar aqui o meu “Até Já” ao meu Pai e ao Gonçalinho… vai para eles o meu pensamento no dia de hoje… o dia dos nossos anjos…

Não tenho medo da morte, nem acho que a morte seja assim tão má como a pintam… acho apenas que desliga a energia que nos liga a um corpo que se estraga. Como na Mãe Terra “nada se perde, tudo se transforma” acho que eles andam por aí, talvez num corpo novo a quem estão a dar toda a sua energia positiva…

Cá por mim vejo-os muitas vezes… em situações em que encontro pessoas parecidas que mos trazem á memória, como em momentos como este agora…

(Vou colocar aqui também o nome do Bruno – os meus amigos sabem que é… Todos diferentes, todos iguais…)

5 comentários:

Lita disse...

Parabéns pelo post. Está maravilhoso, bem escrito e vem directamente do teu coração. Fez-me chorar.
Obrigada pela partilha.

Anónimo disse...

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Sofia Melo disse...

Mia, pá, este teu texto encheu-me os olhos de lágrimas. eu nunca consegui fazer voluntariado por causa disto. acho que uma das maiores forças humanas é dar força a quem sofre, transmitir alegria e a esperança quando se tem o coração dilacerado pela dor de ver a doença a corroer as pessoas. se num adulto é mau, numa criança, é a maior injustiça do mundo. e a maior parte delas tem mais força na alma do que nós todos juntos. não tem medo, como nós. São livres, e nós não. sofrem, mas acreditam que o que vem é melhor. acreditam sempre, e nós não somos capazes disso...
Quanto à morte, gosto de pensar nela como uma despedida.... temporária. mas que custa... inevitavelmente custa muito.
grande post, Mia.

Sofia Melo disse...

Mia, um grande Natal para ti e para os teus, e um 2008 cheio de tudo aquilo que é bom.
saudações natalícias!

Raquel disse...

Por vezes as despedidas distorcem a ultima imagem que temos das pessoas... Eles gostavam que os lembrasses no seu melhor, não no pior... Beijo grande amiga.